O desenvolvimento de produtos, serviços e causas que dão sentido à vida só funciona a partir de um pensamento estratégico centrado no comportamento humano; case da Peloton reforça essa estratégia de behavioral economics
O mais recente ranking das maiores e mais poderosas empresas do mundo elenca organizações de tecnologia como as que mais ocupam lugares no top 10 deste ranking – aqui um infográfico recente do site Visual Capitalist que pode ser de utilidade para esse comentário. Não por acaso, a grande maioria delas se arvora num vasto conjunto de customer experience (CX) que engaja o usuário à excelência dos seus serviços e de suas relações no pré e pós-vendas. E, não por acaso, essas também são as empresas que melhor se utilizam do behavioral economics.
E, de uma forma praticamente inconsciente, já estamos muito acostumados com isso. Qual de nós não tem expectativa de que vai abrir o Netflix, por exemplo, e de repente encontrar com aquele filme que se encaixa direitinho no seu gosto? É o desejo da realização de uma pequena mágica para que nossos cérebros gastem a menor energia possível na escolha do entretenimento – lembrem-se da parte 1 desta série que menciono o paradoxo da escolha na vida contemporânea.
Só que essa mágica se chama “”arquitetura estruturada de escolhas”” que é alimentada por uma inteligência artificial (IA) que vai desde usar caminhos de navegação mais fluídos e organizados para aquele determinado usuário até a disposição da ordem de filmes e séries que são mostrados para ele.
Você já deve ter visto, por exemplo, a página default do Netflix de algum parente ou amigo e já percebeu que é muito diferente da sua página quando você abre o seu app. Cada um recebe a sua página personalizada que se correlaciona às suas escolhas anteriores. É por isso que não é recomendado que você deixe seu login nas mãos de ninguém mais, porque você corre o risco de estar sendo avaliado com gostos de outras pessoas e não o seu.
Uma das ferramentas mais interessantes do Netflix em sua “”arquitetura estruturada de escolhas”” é o que se chama de “”Describing Options”” que permite que seja “”entregue”” à você o trailler ou trecho do filme que melhor se adapte ao seu gosto, anteriormente capturado em seu “”track record””. Não vale aqui descrever como é feita essa predição, mas o quanto ela já está incluída na sua vida cotidiana.
Mais e mais a ciência vem oferecendo ferramentas para que as decisões sejam tomadas de forma mais rápida e eficiente, especialmente nas políticas públicas e governamentais, conforme mencionado no texto anterior desta série. No entanto, e com exceção às empresas de tecnologia, o marketing e as marcas utilizam pouco do conhecimento que já existe à disposição.
99% das nossas decisões são geradas no subconsciente e não dá para falar de BS sem mencionar os vieses cognitivos (ancoragem, padronagem, atribuição, confirmação, enquadramento, efeito halo, autopercepção e de status quo). Não vale também descrevê-los aqui, pois alguns ou todos eles já foram amplamente disseminados ao longo dos últimos anos. Contudo, vale dizer que há uma combinação de vieses que agem juntos um dos outros, para que a decisão seja tomada.
Uma famosa rede de restaurantes de carnes no Texas, o Lone Star State, vinha enfrentando um problema bastante grande nos últimos anos. Sua margem com as carnes vermelhas estava em queda livre ao longo dos últimos 12 meses. E a resposta para restabelecer margem no futuro seria orientar os frequentadores do restaurante para dois segmentos distintos: bebidas e carnes brancas.
O problema é que o restaurante, centenário na tradição em carnes, não poderia reorganizar seus esforços para oferta de carnes brancas (no caso, carne de peru) para não descaracterizar seu escopo de negócios: carnes vermelhas. Dessa forma, os gestores do negócio teriam que fazer os próprios frequentadores do restaurante decidirem por eles mesmos pela opção com maior margem. A escolha foi retrabalhar o menu e os estímulos adjacentes do ambiente para mudança de atitude dos usuários.
A primeira providência estava em rever as lousas-menu expostas com o cardápio do restaurante logo na entrada, que deixaram de conter a oferta dos pratos do dia escritos pelos garçons e passaram a ser escritas e “”desenhadas”” com a novidade “”carne de peru””, sem outra opção para competir (aqui, uma estímulo único, solitário, que ajuda no paradoxo da escolha – menos conteúdo, mais rápida a escolha).
Os menus internos foram revisitados. As ofertas da carne branca – peru – e seu molho especial estavam alocados ao lado do carro-chefe do restaurante, dando um peso especial para o prato. Nesse caso, ocorreu o uso óbvio do viés da ancoragem: “”se está próximo ao carro chefe é porque deve ser tão bom quanto””. Ademais, os aperitivos que vinham no topo do menu foram rebaixados para a parte inferior e os pratos principais para cima (aqui o viés da saliência, ou seja, “”se está em destaque, deve ser melhor ou mais relevante que o resto””).
Por fim, o uso do viés do status quo, aquele que faz a gente nunca desistir do mesmo comportamento por identificar que ele tem sido bom ao longo do tempo, foi quebrado. Todo pedido do prato da carne vermelha principal do restaurante era seguido de uma sugestão do chefe para experimentar o peru. Entretanto, a sugestão sempre vinha com o discurso: “”se você escolheu a carne vermelha X, você precisa experimentar o novo prato feito de carne branca…””. E uma degustação gratuita era trazida à mesa.
O resultado foi o aumento de 30% das vendas do peru no curto prazo e 50% nas carnes brancas do restaurante ao longo do tempo, mesmo durante a covid-19. E o mais interessante é que as vendas de carne vermelha e “”ribs”” permaneceram praticamente estáveis.
Dar um “”nudge”” (como já comentado no texto anterior) para deslocar a decisão de compra é uma coisa, mas usá-lo para alterar hábitos e comportamento é outra muito diferente. Muito embora esse seja um objetivo difícil e complexo, ele não é impossível no behavioral economics, contanto que você coloque na equação da jornada de compra tempo e dinheiro.
O viés do status quo (lembrando, é o viés da inação, da ausência da mudança, pois a situação atual já está boa ou satisfatória), maior responsável pela recompra e uso de muitas marcas e negócios, é um dos mais difíceis vieses para se mudar, já que os usuários estão à mercê de um benefício apreciado pela espécie humana há milhares de anos: a economia de energia, que vem sendo preservada no cérebro reptiliano desde a época dos homens das cavernas que hibernavam para gastar menos calorias, já que não sabiam quando conseguiriam comer novamente. O pensamento é: “”não mudo, pois já conheço (a marca) e se já conheço e sei que tem qualidade. Para que gastar minha energia num movimento de risco?””.
Mudar de hábito, ainda mais, ancorado no viés do status quo pode ser difícil, mas não é impossível. O caso de maior sucesso nos negócios e no universo das marcas é o da Peloton, nos Estados Unidos – que agora está presente no mundo e virou sinônimo de plataforma fitness. No que diz respeito à mudança de hábito, o case da Peloton é um daqueles que podemos chamar de quebra de paradigma em alto estilo.
A Peloton é o maior ecossistema de atividade física do mundo, envolvendo uma plataforma de aulas e equipamentos de alta tecnologia e design sofisticado. A empresa construiu todo seu modelo de negócios cercado pela ideia de estimular novos hábitos em uma categoria cheia de comportamentos contrários ao próprio segmento que é a apatia de se exercitar. E conseguiu mudar não só hábitos, mas instaurar estilos de vida saudáveis jamais imaginados por outras marcas de fitness.
De acordo com o consultor e autor Nyr Eyal, que escreveu um dos mais recentes livros de sucesso de BE chamado Hooked, e é expert em mudança de hábitos, existem quatro diferentes fases para a que o usuário acabe sucumbindo a mudança de hábitos: trigger (internal/external), action, reward e investment, que traduzidos livremente seriam respectivamente: estímulos (internos e externos), ações, premiações e investimento. Com a Peloton, essas fases foram muito bem desenhadas.
Estímulos externos: foram dois os estímulos externos que sinalizaram ao mercado que a Peloton não seria apenas mais um aplicativo de fitness para se exercitar em casa. O primeiro estímulo foi o design sofisticado de produto propriamente dito – originalmente eram somente bikes, mas hoje contam também com esteiras com telas enormes de alta definição e outros acessórios. O segundo estímulo, esse mais conceitual, é o de posicionamento de preço que diferentemente dos apps com modelo de negócios baseados numa pequena assinatura mensal, posicionou-se como um produto/serviço premium price numa categoria pouco ou nada acostumada a isso.
A ideia por trás desse par de atributos externos tão diferenciados da categoria pode chocar e fazer os críticos jogarem pedra no modelo, pois parece um suicídio ser tão sofisticado e premium price numa categoria de tão alto risco, e onde o comprometimento com a atividade física é sempre muito baixo. Só que foi exatamente aí que aconteceu a mudança de hábito. Os estímulos de design & premium price fizeram com que seus futuros usuários e a regularidade de uso dos equipamentos fosse alta, numa espécie de ideia subliminar de que este finalmente seria “”o passo definitivo”” para tirar o indivíduo somente da promessa de se exercitar. Arriscado, mas muito efetiva.
Estímulos internos: todos os estímulos internos são de ordem emocional. E são vários. Desde o desejo intrínseco do ser humano em ficar em forma (e se livrar da culpa de anos de comidas e bebidas sem atividade física) até a sensação de FOMO – fear of missing out (medo de estar perdendo algo…): de ter os colegas entrando para o ecossistema Peloton e ele/a não. Em síntese, são estímulos que foram gerenciados pela comunicação da marca. Aí, um “”nudge”” na culpa, ou no FOMO via campanha publicitária, fortaleceu os estímulos internos como um dos pilares importantes de motivação ou mudança de atitude.
O passo seguinte da mudança de hábito da Peloton, após o convencimento de entrada na plataforma, era o de conseguir fazer com que os indivíduos participassem das aulas no mundo online, um obstáculo já que o sistema pressupõe a presença de apenas você e seu equipamento (sem o incentivo de estar cercado pelo grupo de alunos numa academia, por exemplo). Nesse caso, a construção de um senso de comunidade se fez altamente necessário.
Na verdade, esse ponto se tornou o ponto alto da Peloton. Nenhuma outra comunidade de atividades físicas tem o senso de pertencimento tão alto hoje quanto o da Peloton. Imagine duas amigas planejando as sessões de ginástica para fazerem juntas. A escolha dos professores e os horários que elas pretendem fazer as aulas. E ainda, falar sobre a aula (e com o professor) depois dos exercícios. Só com um pequeno detalhe: ambas têm filhos em idade de cuidado especial. Imaginem a logística de uma mulher nessas circunstâncias para voltar aos exercícios físicos?
Situações como esta seriam impossíveis sem o ecossistema Peloton. As segmentações de pessoas parecidas (“”clusters””) que se juntaram para frequentar aulas na plataforma são as das mais variadas: gestantes, executivos workaholics, notívagos, e mais uma infinidade de grupos que, pelo lifestyle tinham poucas chances de frequentar academias tradicionais ao mesmo tempo que não se interessavam pelas ofertas simplórias dos app de fitness, mas que perceberam a magnitude da oferta da Peloton.
Acima disso tudo isso, ainda temos os professores, treinadores e técnicos da Peloton que são personalidades famosas. Quase celebridades. E por isso, os exercícios físicos se tornaram também um entretenimento além do exercício em si. Nesse aspecto das celebridades no ecossistema Peloton é que mora uma das chaves do negócio: as recompensas e os reconhecimentos individuais aos atletas amadores de apartamento.
Um sistema de gamefication detalhado com recompensas, reconhecimentos e feedbacks personalizados, com a participação do professor-celeb endossando um certificado, por exemplo, tiveram alta eficiência na manutenção da audiência na plataforma. Não só, mas o estímulo de “”pelotões”” competindo uns contra os outros, as músicas com papel importante no engajamento e os ‘high five’ virtuais, completavam o senso de pertencimento e afinidade de grupo.
Esse é o passo final do sucesso da Peloton. Após cada exercício, por ser uma plataforma digital, os dados foram trabalhados a fim de que pudessem gerar mais engajamento aos indivíduos e aos grupos ao mesmo tempo. Estatísticas, evolução, objetivos possíveis, enfim, uma série de dados retrabalhados foram alimentando os participantes até que, em algum momento da relação, o próprio participante reconhecia em si os resultados físicos dos investimentos financeiros e corporais. E o boca a boca (peer to peer) passou a ser um atributo importante para o marketing da marca.
A propósito, o investimento financeiro em si foi uma modalidade à parte do sistema Peloton. Os americanos raramente compram bens de consumo à prestação. No entanto, a marca decidiu vender os equipamentos de forma parcelada para que o usuário conseguisse estabelecer um paralelo subconsciente entre “”pagar uma academia”” e “”pagar o equipamento/plataforma””. Um jeito interessante de driblar o viés do “”status quo””.
Cada vez mais fica claro que o marketing 1.0, 2.0 e 3.0, respectivamente, venda de produtos, de serviços e atributos filosóficos só funcionam a partir de um pensamento basal estratégico: o comportamento humano. As motivações de compra, as decisões de marca, o ato da conversão propriamente dita por um bem são objetos de estudo da ciência comportamental e o behavioral economics.
Agências que ainda vendem como diferencial competitivo apenas a execução de uma campanha criativa, e as consultorias que apenas diagnosticam o perfil do mercado e seus públicos, estão fadadas ao fracasso nos próximos anos. As que não estiverem alinhadas com os novos tempos, envelhecerão muito rapidamente e perderão o barco da competitividade.
Bem-vindo ao mundo da ciência do comportamento!
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